“Zara Zerou”: loja não criou código para alertar a entrada de negros, dizem ex-funcionários
Ex-funcionários da Zara questionam relatório da polícia
Depois de uma confusão em uma de suas filiais no Ceará, a rede de lojas de roupas e acessórios Zara foi acusada de racismo. Segundo uma delegada de polícia, o gerente teria barrado a sua entrada por ela ser negra.
O fato aconteceu em 14 de setembro, mas agora a Polícia Civil do Ceará (PCCE), além de indiciar o gerente pelo crime de racismo, enviou à justiça a acusação de que há um código para “alertar” sobre a entrada de negros e pobres na loja. O delegado-geral da PCCE, Sérgio Pereira, disse que considera o procedimento da loja "absurdo" e "inaceitável". Segundo reportagem do portal UOL, entidades do movimento negro processaram a rede de lojas e pediram R$ 40 milhões em indenização por dano moral coletivo.
Apesar das acusações, funcionários e ex-funcionários das lojas Zara negam que haja o código “Zara Zerou” citado pela polícia. Na verdade, o que existe é um procedimento para lidar com pessoas, na maioria das vezes brancas, que furtam roupas e acessórios.
A confusão
Naquele 14 de setembro, uma terça-feira, havia intenso movimento na Zara do Shopping Iguatemi, em Fortaleza, quando Ana Paula Barroso, diretora adjunta do Departamento de Proteção aos Grupos Vulneráveis da Polícia Civil do Ceará, foi barrada na entrada da loja pelo gerente, o português Bruno Simões Antônio. Segundo ela, Simões informou que era por “questões de segurança”. Ela mesma conta que estava tomando sorvete, com a máscara abaixada, e pensou que fosse esse o problema.
Ao voltar acompanhada do chefe da segurança do shopping para questionar o bloqueio, Ana Paula aceitou o pedido de desculpas de Simões Antônio, que afirmou não ter preconceitos. Ao conversar com amigos, contudo, ela percebeu que poderia ser um caso de racismo, e fez um boletim de ocorrência.
Intimado para depor na delegacia, o gerente alegou que a delegada estaria usando a máscara de forma inadequada, contrariando os protocolos contra a Covid-19. Ao observar as imagens das câmeras de segurança do shopping, a investigação da polícia apontou a possibilidade de um tratamento diferente dado aos clientes de acordo com sua cor e perfil. As imagens mostravam a delegada sendo barrada enquanto tomava sorvete sem máscara, ao passo que pessoas brancas eram atendidas dentro da loja sem máscara.
O que dizem funcionários e ex-funcionários.
Entrei em contato com o gerente da loja, que afirmou que a resposta seria dada apenas pela empresa. A Zara, por sua vez, informou que iria se pronunciar por nota (leia no fim da reportagem).
Conversei, com um ex-funcionário da Zara de Fortaleza, que chamarei pelo nome fictício de João*, pois ele diz temer represálias. Ele conta que não pode dizer se houve racismo neste caso, mas ele diz que o código “Zaga zerou” não existe. O que existe, diz ele, é um código para alertar a ausência de clientes em determinado setor da loja a fim de que os funcionários possam dar apoio no caixa, para reduzir as filas. O zero era dito quando não havia clientes na sessão.
João conta que existe, porém, ainda um outro código para avisar quando uma pessoa entra para roubar. Mas este código é composto da palavra “Zara” mais o nome da sessão de onde a pessoa está. Ele diz que esse alerta não é feito pela cor da pele ou do status da pessoa, mas por um histórico de pessoas que já foram pegas roubando na loja e ficaram conhecidas, algo que ele diz ser frequente. Além disso, ele conta que a maioria das pessoas que roubam a loja Zara são pessoas brancas, muitas vezes ricas.
“Em Fortaleza acontece muito roubo e a gente já tem o conhecimento de pessoas que entram na loja com atitude suspeita. O shopping vê pelo sistema de câmeras e avisa a presença de gangues. Nesse momento, os funcionários ficam em alerta”, diz João, que diz já ter visto roubos de até 20 mil reais.
João, que trabalhou na empresa durante a pandemia, diz que há uma rígida política com relação ao uso de máscaras e que os gerentes são incisivos quanto a isso. O seu depoimento é corroborado por uma cliente que diz que foi barrada na entrada da mesma loja Zara onde ocorreu a polêmica. Ela, que é uma mulher branca, teve a sua entrada impedida pelo vendedor por estar tomando sorvete e, portanto, sem máscara. Ela diz que o funcionário foi gentil em sua solicitação e ela, entendendo que não poderia estar fazendo isso, voltou à loja depois.
A vendedora Izabela Cruz, de 24 anos, que trabalhou entre 2018 e 2019 na loja Zara localizada em um Shopping de Vitória, no Espírito Santo, diz que durante o período em que trabalhou na empresa, nunca presenciou ou sofreu racismo – Izabela, que é negra, diz que há muitos funcionários negros na loja e que todos sempre eram tratados da mesma maneira, independente do cargo ou da cor. Ela também confirma que o código “Zara zerou” nunca existiu, mas que há um código para identificar furtos.
"Havia muito roubo, eu tentava sempre fazer revista, para manter controle, mas nunca vi ato desrespeitoso ao cliente. Pelo contrário, sempre agimos com cautela”, disse.
A artesã Sara Cirino, de 33 anos, que trabalhou nesta mesma loja de Vitória, mas em 2016, também diz que existem códigos, mas estes não estão relacionados à cor ou vestimentas dos clientes, mas a atitudes suspeitas. Estes códigos, diz Sara, são conversados entre as equipes de forma velada e não são distribuídos nas cartilhas da empresa.
O jornalista Tiago Chagas, 36 anos, que trabalhou há 17 anos em diversas lojas da Zara de São Paulo, diz que nunca presenciou casos de racismo, explícitos ou velados. Além disso, diz ele, a gerente da loja em que ele trabalhava era negra e tratava todos os funcionários da mesma forma: de forma abusiva e com assédio moral.
“O fato de eu ter trabalhado com um time diverso, mostra que 17 anos atrás isso não acontecia. Havia, sim, assédio moral. Essa gerente nunca demonstrou preconceito por sexo ou cor de pele, mas tratava com falta de respeito e gritos o pessoal do estoque”, diz Thiago, que conta não ter saudades da Zara.
Uma funcionária da Zara, que hoje trabalha em uma loja do estado do Rio Grande do Sul, e também pediu para não ser identificada, explica que a Zara é uma das lojas com mais furtos no Brasil, e que por isso a atenção da equipe tem que ser redobrada.
“Alertas de aviso só são feitos para pessoas com casacos grandes/capas, sacolas muito grandes e outros detalhes passados internamente, nada diretamente ligado à cor de pele e renda aparente. As pessoas que mais roubam são de pele branca”, disse.
E mais outra ex-funcionária da loja Zara, localizada no Barra Shopping, na cidade do Rio de Janeiro, e que também pediu para não ser identificada, disse que durante os 10 meses em que trabalhou na empresa, nunca presenciou um caso de racismo por parte dos funcionários aos clientes, apenas o contrário. Ela, que é uma mulher negra de 20 anos, diz que a empresa sempre deixou claro que poderia acioná-la em caso de racismo. Ela também relata que a maioria dos furtos são realizados por pessoas de pele branca.
O que dizem os envolvidos no caso
Entrei em contato com a delegada Ana Paula e não obtivemos retorno. Enviei diversas questões à Polícia Civil do Ceará, como por exemplo se haveria conflito de interesses em uma investigação envolvendo uma delegada da corporação ser feita pela própria entidade. Também perguntei como os investigadores chegaram ao código “Zara Zerou”. A assessoria nos disse que, no momento, não estão autorizados a prestar qualquer tipo de informação sobre o caso e que a conduta ocorrida está sob investigação.
A Zara disse que não teve acesso ao relatório policial, mas que colaborará com as autoridades para esclarecer que “a atuação da loja durante a pandemia Covid-19 se fundamenta na aplicação dos protocolos de proteção à saúde, já que o decreto governamental em vigor estabelece a obrigatoriedade do uso de máscaras em ambientes públicos”. Além disso, a empresa frisou que qualquer outra interpretação dos fatos, não somente se afasta da realidade como também não reflete a política da empresa. Por fim, a empresa disse que nega a existência de um código para discriminar clientes e que não tolera nenhum tipo de discriminação e que a diversidade, a multiculturalidade e o respeito são valores inerentes e inseparáveis da cultura corporativa.
“A Zara rechaça qualquer forma de racismo, que deve ser combatido com a máxima seriedade em todos os aspectos”, disse.